E o Oscar de melhor filme vai para: No ritmo do coração. E Francisco pede aos comunicadores: escutar com o ouvido do coração. A sinergia de escuta e coração neste tempo não é uma obra do acaso. Em tempo de conflitos, de crises e de retomadas, a melhor alternativa é escutar com o ouvido do coração, no ritmo do coração.
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pela premiação cinematográfica mais esperada do ano, geralmente é reconhecida por contradições de suas escolhas nestes quase 100 anos de história. Dos dez filmes que concorreram à maior categoria em 2022, talvez No ritmo do coração estivesse entre os que menos fazem o tradicional estilo da Academia. Não erraria quem apostasse em Ataque dos Cães ou Não olhe para cima. A vitória de CODA (título original do longa) também em roteiro adaptado e um ator surdo (Troy Kotsur) como melhor coadjuvante não é só surpreendente, mas um recado (bem dado) sobre a necessidade de inclusão e representatividade.
Uma nota para o nome CODA, que é a sigla para Child of Deaf Adults, ou seja, filha de adultos surdos, em português. Ser filha de adultos surdos faz de Ruby, a protagonista interpretada por Emilia Jones, escutar com o ouvido do coração e isso dá o ritmo da narrativa. O filme, disponível na plataforma Amazon Prime, é uma refilmagem de A Família Bélier (2014), que narra o trabalho no campo de uma família francesa surda e sua relação com o mundo ouvinte. Agora temos uma família norte-americana que vive em uma região costeira e busca seu sustento por meio da pesca.
No filme, a jovem de 17 anos é a única ouvinte numa família de surdos. Talvez o grande trunfo do filme não resida na interpretação de Emilia Jones, nem no roteiro ou na direção, mas na necessária ousadia de se escalar três atores surdos (Troy Kotsur, Daniel Durant e Marlee Matlin) para formar a família de Ruby. Este é, inclusive, um avanço notável na adaptação hollywoodiana em relação à versão original francesa. A naturalidade com que a língua de sinais é usada no longa é algo surpreendente e faz com que o espectador termine o filme com um desejo de aprendê-la e ampliar sua relação-comunicação com a comunidade surda.
A família feliz, mesmo em meio às dificuldades financeiras e ao estranhamento que provoca na comunidade, desperta valores para reflexão sobre a constituição familiar, o mundo do trabalho e a forma como acolhemos os surdos em uma sociedade predominantemente falante. A associação feita neste texto do título do filme com a mensagem do Papa Francisco para o 56º Dia Mundial das Comunicações Sociais é uma provocação a partir do que o pontífice afirma que “existe uma surdez interior, pior do que a física. De fato, a escuta não tem a ver apenas com o sentido do ouvido, mas com a pessoa toda. A verdadeira sede da escuta é o coração.”
Para escutar no ritmo do coração, é preciso compreender que a comunicação não é só um ato instrumental, ou técnico, mas da partilha que se faz vida. É preciso dizer – e repetir quantas vezes for preciso – que escutar é muito mais do que ouvir. Na 50ª mensagem de um papa aos comunicadores, em 2016, Francisco dedica dois parágrafos à escuta e afirma que ela “nos permite assumir a atitude justa, saindo da tranquila condição de espectadores, usuários, consumidores. Escutar significa também ser capaz de compartilhar questões e dúvidas, caminhar lado a lado, libertar-se de qualquer presunção de onipotência e colocar, humildemente, as próprias capacidades e dons ao serviço do bem comum.”
O colocar-se ao serviço do bem comum é plenamente visível em No ritmo do coração quando a família aposta na constituição de uma cooperativa de pescadores para se fortalecerem a combaterem o monopólio de detentores econômicos que taxavam vez mais os impostos. O filme é uma lição de integração de indivíduos com deficiência à sociedade, sem a formação de guetos. É a crença na convivência e a afirmação de que somos todos irmãos.
Um último aspecto que quero destacar, dentre tantos que o filme me desperta, é fato de ser um drama musical. Pode parecer irônico um musical sobre uma temática de surdez. A única integrante não-surda da família percebe sua grande paixão por cantar e é encorajada por um professor a entrar em uma escola de música. O conflito é uma constante para Ruby: continuar ajudando a família nos negócios da pesca ou correr atrás dos sonhos? A escolha do repertório não é apenas um apêndice do roteiro, mas dá, verdadeiramente, o ritmo do coração, inclusive quando a sequência musical é completamente silenciada. A meu ver, um dos pontos altos do filme e um belo momento para o exercício da empatia, a provocação e o incômodo sentido pela ausência de som. Sentir a dor do outro para se colocar em seu lugar.
Francisco, na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações deste ano, cita Santo Agostinho (Sermão 380,1): “Não tenhais o coração nos ouvidos, mas os ouvidos no coração”. Diante de uma sociedade barulhenta, ter ouvidos no coração é um desafio e um dom. Certamente, a mensagem de Francisco e o filme vencedor do Oscar nos ensinam como vencer este desafio e como cultivar este dom.
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