Congregação Santíssimo Sacramento

Província Nossa Senhora de Guadalupe

Entrevista de Pe. Marcelo Carlos da Silva, sss ao Jornal O Tempo – Penitências Quaresmais

‘Penitências quaresmais são um contraponto aos excessos da sociedade contemporânea’, diz padre

Marcelo Silva, padre e psicólogo, defende que sacrifícios nos preparam para a frustração e nos ajudam diante de um contexto social pautado pelo excesso.

Por Alex Bessas
Publicado em 
17 de abril de 2025

Em uma sociedade pautada pela cultura dos excessos, que indiretamente promove a cultura do abuso – seja no consumo, no trabalho, nas escalas de posses, na concepção de sucesso reduzida ao acúmulo de bens e fama –, é importante trabalhar com uma ferramenta que nos chama à sobriedade”. A reflexão é do padre, teólogo, filósofo e psicólogo Marcelo Carlos da Silva, para quem as penitências e sacrifícios quaresmais podem ser um instrumento para o exercício de uma certa contenção dessa lógica do exagero, onde tudo pode e tudo convém.

Atuando na Igreja da Boa Viagem, em Belo Horizonte, o religioso defende que os tradicionais ritos iniciados no período da quaresma e encerrados na Semana Santa podem ser lidos como uma marca de limitação, com potencial de nos ajudar a encarar nossas próprias faltas, além de permitir, em certa medida, o cessar de alguns excessos.

“A penitência, como esse elemento de sacrifício em uma dimensão saudável, nos ajuda a lidar melhor com as perdas, porque as perdas nos dizem o tempo inteiro que não dá para ganhar o tempo inteiro, que a vida não é um caminho só de conquistas. Essa prática, portanto, nos ajuda a lidar com o elemento da frustração por meio de uma experiência religiosa que nos leva a transcender, trabalhando, na vida espiritual, os bloqueios da vida humana social”, argumenta.

“Então, penso que essas práticas nos apontariam para a sobriedade, nos ajudando a lidar com o limite da vida em uma sociedade ‘hipermoderna’, pautada pelo exagero, pela cultura do hedonismo, em que o importante é eu estar sempre bem e feliz”, avalia, fazendo menção a um conceito cunhado pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky para delimitar o momento atual da sociedade humana, recorrendo ao sufixo “hiper” para assinalar uma exacerbação dos valores criados na modernidade e, agora, elevados de forma exponencial – daí que, por exemplo, a valoração do indivíduo se converte em individualismo

Exercício de autocontrole

Do ponto de vista teológico, Marcelo Carlos da Silva defende que a penitência não deve ser encarada como uma forma de barganha com Deus, mas, sim, como um exercício espiritual realizado pela via corporal. Ou seja, ao deixar de comer a carne ou de fazer uso de bebida alcoólica, para ficar em dois exemplos mais comuns na tradição católica, o penitente consciente está realizando um exercício de autocontrole, que pode extrapolar o próprio objeto do jejum, fazendo repensar uma série de outros excessos.

“Se deixo de beber, posso também rever minha relação com o consumismo. Se deixo de comer carne, posso pensar meu costume de falar mal dos outros, porque, afinal, se consigo, por um período, renunciar a algo que me dá prazer e é um excesso no meu dia a dia, eu também posso repensar minha relação com outro excesso”, resume, inteirando que, para a liturgia cristã, essas renúncias não devem ser feitas simplesmente “para agradar Deus”.

Para o psicólogo, filósofo e sacerdote, aliás, as penitências quaresmais, ao incentivar a renúncia coletiva, como o jejum ou a abstinência de determinado alimento ou substância, pode levar a um senso de comunidade através do sacrifício compartilhado. Ele explica que o conjunto de práticas quaresmais inclui o jejum, a oração e a caridade, considerados exercícios espirituais e mentais, que funcionam conjuntamente.

Na prática, prossegue Silva, ao renunciar ao hábito de comer carne por um período, o ideal não é congelá-la no freezer para comer depois, mas, sim, compartilhá-la com quem não tem. “Dessa maneira, estamos exercitando o senso de existir com o outro, em coletividade. E esses exercícios podem nos despertar para a consciência da alteridade, porque eles nos projetam para fora”, sinaliza, ponderando que, obviamente, esta não é uma garantia automática. “Há quem faça o jejum por fazer, o que não promove esse tipo de reflexão”, reconhece.

Ritualização

Por fim, na avaliação de Marcelo Carlos da Silva, as penitências quaresmais podem ser importantes também da perspectiva da ritualização das experiências vividas – rituais que, como defende o filósofo Byung-Chul Han, “transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável. São no tempo o que uma habitação é no espaço. Fazem o tempo se tornar habitável. Sim, fazem-no viável como uma casa. Ordenam o tempo, mobíliam-no”.

“Por isso, acredito que, sim, seria oportuno resgatar essa tradição da penitência saudável como forma de elaboração da saúde mental, social e até física e psicológica, fazendo desta prática uma espécie de barreira à cultura do ‘proibido proibir’, do excesso de ‘sim’”, explica, inteirando que, se no passado sociedades totalitárias eram pautadas no “não”, hoje o contexto é o oposto.

Materia dispoível em: https://www.otempo.com.br/interessa/2025/4/17/penitencias-quaresmais-sao-um-contraponto-aos-excessos-da-sociedade-contemporanea-diz-padre

Fonte: Jornal “O Tempo”, 17/04/2025, Belo Horizonte/MG.